sábado, 4 de junho de 2011

RUBENS LEMOS faria 70 anos dia sete. Leia a homenagem do seu filho Rubinho, cujo texto é um primor.



Na corda bamba do sonho

PARTE I

O meu aniversário de 12 anos foi comemorado numa casa em que morávamos, de aluguel, como de hábito, na Rua Abelardo Calafange, em Morro Branco. Viver de casa em casa tem ao menos um consolo: Você varia, de acordo com a situação financeira. De arquitetura, pendura e aventura.

A casa, que ainda existe, tinha um jardim bem bonito, cuidado pela minha mãe com todo o capricho feminino. O sonho dela sempre foi de que papai comprasse a casa, mas o dinheiro não dava e a desculpa estava sempre na ponta da língua afiada e dribladora: A Inflação galopante deste Governo Figueiredo.

Parte do salário era destinada ao PT, que ajudou a fundar. Orgulhoso de hospedar Lula na casa da Abelardo Calafange , foi o primeiro candidato a governador do partido. Dos mais jovens “companheiros” jamais teve um reconhecimento verdadeiro. Digno. Recebeu o nome de um auditório numa sede que nem mais existe. Foi até melhor. PT no Poder, Papai teria infartado de desgosto com as peripécias de “Palofi”.

Então, fiz 12 anos e dispensei lancheiras por me achar homem feito embora nem adolescente autenticado fosse ainda. Recusei docinhos, porque já achava que era frescura, a homofobia de hoje.

Papai reuniu seus amigos boêmios, como sempre fazia aos fins de semana e comemoramos no domingo, com direito a cantores, eu com presentes que não eram bonecos de plástico ou carrinhos de corrida em miniatura. Passei a receber calças compridas e camisetas com estampa de surfistas sobre as ondas havaianas, moda igual ao tênis All Star , o primeiro que ganhei.

A estrela da minha festa de aniversário chegou luminosa. Quando Assíria Seixas Lemos entrou, divina, sorriso de desmoronar arcadas gregas, todos passaram a observá-la. As mulheres, por ciúme, os homens, por admiração e desejo. Assíria foi muito simpática, morava nos Estados Unidos e tinha vindo a Natal rever a família Lemos. Seu pai, Abelardo, irmão do meu.

Foi a primeira e única vez em que vi Assíria, a mulher que, muitos anos depois, faria um Rei chamado Pelé curvar-se à sua beleza mignon e de um dos rostos mais perfeitos que pude ver em 40 anos de idade. Antes da meia-noite, papai cantou Menino Passarinho, uma letra triste, falando de alguém que tinha vontade de voar. Terminei calado o aniversário.

O Vasco vencia o América(RJ) por 2x1, o ABC superava o Riachuelo por 3x0 no Castelão(O América seria tetra em 1982), o apurado de presentes havia sido bem razoável, mas chorei escondido. Travesseiro de cúmplice, o som daquela música de Luiz Vieira me perseguindo.

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PARTE II

Hoje é quatro de junho, é sábado, mas não dá para soltar filipetas nem pensar num Cadillac. Há 12 anos, o tempo que eu completara na noite da estonteante prima Assíria, Rubens Lemos, pai, finalmente chegava ao lugar onde jamais teria cobradores atrás do dinheiro do aluguel atrasado: O túmulo da Quadra Santo Onofre, no Cemitério do Alecrim.

Ele morreu a 4 de junho, encerrando uma vida que oscila por definição no título de duas crônicas, escritas por amigos. Vicente Serejo, ao homenageá-lo, foi certeiro ao dizer que Rubens Lemos era a versão viva da Corda Bamba. Nascido para desaparecer. Agnelo Alves, padrinho de um dos meus irmãos, chamou-o de Militante do Sonho.

Papai não tinha planejamento, organograma, poupanças ou patrimônios materiais. Quimeras foram o seu oxigênio. Missões quixotescas lhe moviam para redemoinhos. Gastava uma feira inteira num almoço de domingo, voz rouca cantando sambas de Ataulfo Alves e Lupicínio Rodrigues.

Ele sempre foi e voltou. Saiu e entrou. No seu livro de memórias, É Tudo Verdade, o jornalista Ricardo Carvalho, um dos melhores de Pernambuco, conta que trabalhou com Rubens Lemos nos Associados em Recife, anos 1960.

Revela que papai foi demitido quando o diretor Antonio Camelo o descobriu esquerdista e imaginou que ele explodisse com bombas as oficinas do jornal. Fico rindo, hoje, no dedilhar do texto, ao pensar em papai manejando dinamites com mãos que produziam poemas, contos, reportagens.

Ricardo Carvalho afirma que ficou amigo de Rubens Lemos pela convergência de pensamentos e, exercitando o transcendental, carimba Agnelo e Serejo; “Rubens Lemos desapareceu como que por encanto.”

A Ricardo Carvalho direi um dia que papai, após exílio no Chile, caiu nas mãos do cruel coronel Cúrcio Neto, comandante do Dói-Codi em Recife. Rubens Lemos foi torturado durante 44 dias ininterruptos. Sérgio Paranhos Fleury, o delegado de olhos brilhantes e ódio espumante, bateu muito em Rubens Lemos, codinome Teles. Papai teve todas as unhas arrancadas. Cúrcio Neto o espancava e lia a Bíblia para ele.

Papai se vingava de Cúrcio Neto cantando o trecho final de Bloco da Solidão, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Gritava, formando um coral de dor no cárcere “Por isso, quando eu passar batam palmas pra mim!”. Rubens Lemos, para ódio dos algozes, jamais delatou alguém. Sempre teve ojeriza a dedo-duro. Herdar sentimento assim, para mim é melhor do que ter recebido dele um condomínio.

Quando o internei, entregando-o aos cuidados dos médicos Luiz Alberto Marinho e Antônio Araújo, deles ouvi que não havia esperanças. Pediu-me um rádio de pilhas, “para ouvir os jogos do ABC”. Mesmo doente, ensinou redação a auxiliares de enfermagem que prestariam vestibular.

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PARTE III

Pouco antes de ser hospitalizado e morrer, em conseqüência de problemas resultantes de cirrose hepática, Rubens Lemos voltou ao Castelão(Machadão). Morava na casa de minha Tia Ruth Lemos, na Zona Norte de Natal. Saiu escondido e entrou num ônibus fretado por torcedores do ABC.

Barba nazarena, visitou as cabines de rádio, onde discursou durante anos no estilo que o celebrizou como o Comentarista de Classe, pela vastidão cultural e conhecimento teórico que o colocaram sempre em primeiro lugar de audiência.

A foto que ilustra a coluna foi um primor técnico da revelação de um homem em despedida de tudo, cansado da luta, resignado e sem razões para viver, sem sonhos para movê-lo. Foto do repórter Teotônio Roque, além da imagem, uma perspectiva sobre a ternura derrotada.

Observem o olhar de Rubens Lemos para o Castelão(Machadão), que ele viu superlotado nos bons tempos. Parece uma troca telepática de confidências. Ele dizendo ao estádio que o seu tempo também acabaria, como no verso “De vez em quando é bom partir, porque afinal não se chega sempre”. Rubens Lemos se foi no 4 de junho de 1999, quando o Machadão, inaugurado em 4 de junho de 1972, completava 27 anos.

Hoje é o Machadão quem agoniza para morrer, como aconteceu com aquele homem, cirandeiro da alegria, caminhante por destino. A qualquer hora, ouvirei para chorar, de novo, Rubens Lemos cantando Menino Passarinho. Um dia, quem sabe, ele bate a porta, entra e pede um copo de Cachaça Caranguejo sem dizer de onde veio. Se for terça-feira, ótimo. Dia 7 ele faria 70 anos de vida.

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FONTE: Rubens Lemos Filho. As fotos foram cedidas ( ao BLOG ) por Rubinho.
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2 comentários:

  1. grande homem, tive o prazer de conhecer quando aqui cheguei vindo do interior. quantas vezes chamado atenção por deixar de fazer minha obrigação para escutar Rubens falar coisa da vida que tinha passado com ele.

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