sábado, 17 de março de 2012

ATÉ MAIS, DR. ERNÂNI.Transcrevemos o texto de Rubens Lemos Filho, cujo autor merece aplauso ao fazer uma despedida emocionada ao ETERNO MESTRE


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1) Ainda estou devendo uma visita ao novo espaço do meu barbeiro Beto Guedes. É uma dívida que pagarei nos próximos dias. Na última sexta-feira, a pretexto de comprar um produto para atenuar os efeitos de uma dolorosa cirurgia na gengiva, passei numa loja de produtos odontológicos, ao lado da última sede do salão dos Guedes, sementes do velho Toinho.
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2) Parei por alguns minutos e uma saudade aflitiva me invadiu. Nada do que me seduziu havia ali. Faltava o calor humano. Portas fechadas, aviso grande do novo endereço e o vazio imenso e intenso, nenhuma cadeira, apenas o silêncio.
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3) Me permiti voltar aos bons momentos vividos onde me tornei mais gente, passei a ser mais humano e a conhecer melhor o universo da cidade. Uma barbearia é um vai-e-vem de tendências, opiniões, manias, idiossincrasias, chatices, soberbas, sentenças eleitorais e futebolísticas.
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4) A barbearia é o refúgio em que nós, homens, nos tornamos fúteis e inocentes. Falamos mal da vida alheia, resolvemos todos os problemas nacionais e particulares. Encerradas as discussões, barba, cabelo e bigode feitos, a impressão que se tem é que todos estão com a conta bancária farta, estourando o caixa eletrônico. Na vida real, 80% no vermelho.
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5) Na barbearia há ricos, remediados e os lisos, que vão se chegando e ouvindo mais para propagar na rua. São os multiplicadores dos boatos que voam mais ligeiro que uma Ferrari por todos os bairros da cidade até chegar às redações.
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6) Barbearia é sentimento e numa das derradeiras vezes em que estive no antigo salão, hoje um oráculo do nada, fui buscar em seu carro o ex-presidente do ABC e ex-prefeito de Natal, Ernani Alves da Silveira, trazido pela inseparável filha Mona.
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7) Para ser justo, fomos eu e Beto. Embora bem doente, aspecto cansado e murmurando poucas palavras, Dr.Ernani, alto como um general de campo de guerra, pesava um bocado. O colocamos na cadeira. Eu passei apenas a observá-lo.
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8) Ele me cumprimentou por cumprimentar e os seus olhos enxergavam algum mistério. Estavam distantes do ambiente. Com o padrão simples no vestir, camisa de tecido por fora da calça feita em alfaiate, ali estava um homem da cidade, conforme escrevi tempos atrás ao saber que ele seria homenageado pelo clube que tanto amou e fez crescer.
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9) Continuei a observá-lo. Passei a entender a distinção do título de Doutor Ernani, que aprendi a chamar quando papai me apresentou na sede velha do ABC em Morro Branco, eu aos 10 anos, encantado no meio dos jogadores num campo de areia onde só jogava quem sabia.
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10) Doutor Ernani Alves da Silveira. Na Inglaterra, seria condecorado pela Rainha um "sir", um cavaleiro do império britânico. Doutor Ernani seria um excelente ator de filmes de guerra, como comandante-em-chefe ou de júri, como magistrado justo e firme.
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11) Ponto de equilíbrio no ABC, ganhou o respeito de todos os cardeais, conselheiros, dirigentes, torcedores, puxa-sacos, repórteres, desde 1956, quando, vendedor de Marpas, ainda jovem, foi praticamente obrigado a assumir a Presidência do ABC, campeão da cidade com Jorginho dando aulas de malabarismo no Estádio Juvenal Lamartine.
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12) Doutor Ernani da Silveira alcançou todos os patamares do respeito sem que para isso fosse necessário comprar consciências, negociar pontos de vista, transigir em convicções, sujar as mãos em negociatas. Foi prefeito de Natal e, ao fim do mandato, funcionário da Construtora Flor.
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13) Doutor Ernani da Silveira conquistou sua liderança com honra e este é um brilho humano e nato que está desaparecendo no mundo de hoje, tão tecnológico, individualista e falsamente sorridente.
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14) Ainda bem que Doutor Ernani da Silveira não navegou nas águas turvas do artificialismo moderno. Não era da sua natureza simples. Da sua autoridade inviolável quando os ânimos e interesses se confrontavam em polêmicas alvinegras.
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15) O jornalista e amigo Gabriel Negreiros me informa neste sábado que Ernani Silveira está morto. Pobre, digno e cidadão. O cansaço me bate. Estou cheio de escrever sobre mortos bons. Que regra é esta que leva primeiro os decentes para que fiquem alguns precários?
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16) Na reclusão de minha casa, decidi não ir nem ao velório tampouco ao sepultamento de Doutor Ernani da Silveira. Um pouco por inconformismo. Também por lembrar de uma cena, dia 4 de junho de 1999, quando velávamos o corpo do meu pai e ele chegou. Me abraçou como a um neto e disse: "Força, menino!". Agora eu não teria ninguém para repetir um gesto tão firme, verdadeiro e emocionado.

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FONTE: o texto é de autoria do jornalista Rubens Lemos Filho.
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Na foto (ao lado) o Sr. Ernani Alves da Silveira recebendo homenagem do ABC Futebol Clube. IMAGEM/crédito: site abcfc.com.br .
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