sábado, 10 de agosto de 2013

Que tal você ler um texto de 1954 sobre um AMISTOSO que NÃO TERMINOU ? O texto é uma OBRA PRIMA da escritora RACHEL de QUEIROZ .


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O texto a seguir foi extraído do livro "O Melhor da Crônica Brasileira 1", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 2000, pág. 56.
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Entre as melhores crônicas do livro acima citado, destaca-se , sem dúvida, o texto de Raquel de Queiroz, renomada escritora brasileira, cuja ousadia maior foi ser a PRIMEIRA MULHER a OCUPAR UMA CADEIRA na ABL ( Academia Brasileira de Letras ).
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O texto abaixo ( salvo engano ) data do ano de 1954.

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O AMISTOSO / POR RAQUEL DE QUEIROZ


1) Os visitantes ou adversários, convidados para aquela partida amistosa do chamado esporte bretão, chegaram festivamente num caminhão ornado de arcos e guirlandas. Sim, no começo tudo são flores. Flores e palmas, discursos, garrafas de cerveja, e os cartolas, que se distinguem dos demais presentes pelos bonitos ternos domingueiros, gravatas, chapéus de seda, como convém a legítimos paredros.





2) Não havendo no campo instalações de vestiário, os craques descem do carro já devidamente uniformizados — camisa de azul-turquesa, meias e chuteiras, sim, chuteiras regulamentares, que isso é jogo de fato e não pelada de moleques. Deficiências, se as há, é no campo propriamente dito, que seria ótimo se não sofresse de uma depressão bem no seu centro geométrico,exatamente onde se costuma riscar aquele grande círculo de giz.E como essa praça de esportes se situa numa baixada, sempre que chove apresenta o aspecto de um prato fundo cheio de água — e quando não é água é lama.


3) Naquele dia, felizmente, era apenas lama, e pouca. E sob os aplausos da assistência, tanto mais animada porque gratuita (ainda é um problema a resolver, esse da assistência em campo aberto, sem possibilidades de bilheteria). Juiz, jogadores, cartolas, reúnem-se um pouco de lado, pois que os paredros estão de sapatos novos e aquela supracitada lama os assusta um pouco; faz-se o toss, os visitantes pegam o lado sul que é o melhor, o presidente dos locais dá graciosamente o primeiro chute.Começou a partida!





1.° TEMPO



4)
 Xaveco, mulato, brevilíneo de canelas arqueadas, revela imediatamente a sua classe de grande artilheiro: tem fôlego, tem velocidade, tem cada tiro direito ou canhoto — tanto faz — que arranca aplausos frenéticos da torcidaOutra grande figura em campo é o goleiro dos visitantes. E o jogo vai indo muito bem, bola para lá e para cá, passe, cabeçada, chute a gol, gol — não, gol não, passou por cima da trave. O couro vai para Bira, Bira perde para um galalau amarelo dos "estrangeiros"o galalau perde para Zico, Zico passa para Lucas, que perde para o capitão dos visitantes, um louro de gorro de meiaAí Xaveco interfere na raça, toma a bola, o louro tranca, Xaveco dá-lhe uma carga, o louro acha ruim, revida, o juiz apita, os dois se agarram e por trás chega Bira, que é gordo e violento, e larga um pontapé no terço inferior da coluna vertebral do louro.Fecha-se o tempo, o juiz apita, a assistência pula a cerca e invade o campo, o pau começa a comer, mormente nas costas dos forasteiros, o juiz retira-se e se encosta à cerca, aguardando aparentemente que os ânimos serenem. Quem interfere são os paredros, austeros e educados, com as suas gravatas ao vento, chamam asperamente os craques à ordem, expulsam a assistência, interpelam o juiz, que relutantemente volta ao seu posto; aos poucos os craques se acomodam, o juiz apita, os paredros recolhem-se. O jogo recomeça.









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5) Mas parece que o incidente estimulou os visitantes, que dão para jogar milhões. São unshúngaros. O time local perde terreno, o galalau passa a marcar Xaveco, que não dá mais uma dentro. E o diabo do louro tornou-se proprietário do balão, marca um gol de saída, depois o seu "secretário", um crioulinho ligeiro que é uma faísca, marca o segundo tento; e aí Xaveco, desesperado (talvez dentro da área penal), atira uma canelada terrível no galalau, derruba-o, avança no crioulo, larga-lhe o salto da chuteira por cima do dedão, o crioulo grita, o louro acode, Xaveco já completamente louco lhe dá um tapa na cara, o juiz apita, uns gritam foul outros gritam penalty, e um engraçado diz que foi só hands, já que Xaveco apenas meteu a mão na lata do loureba.












6) O juiz continua apitando, parece que vai mesmo marcar o penalty. E um torcedor local puxa o revólver, dizendo que aquele penalty só se for passando por cima de algum cadáver. O juiz nessa altura se declara cheio com a partida e larga o apito ali mesmo. Um paredro fala que ele será expulso do quadro de árbitros e o juiz dá troco, que quadro de árbitros uma ova. Mas um dos bandeirinhas voluntários logo se apossa do apito, passa a dirigir o pessoal com surpreendente autoridade e, quando se vê, o jogo começa outra vez. Vai macio, vai de valsa, é um minueto, até que consultados os cronômetros verifica-se que acabou o primeiro half time, passando-se ao recesso para em seguida dar início ao...








... 2 ° TEMPO que não houve, segundo passo a expor. Pois não vê que no Distrito havia uma QUEIXA contra Bira — QUEIXA dada por UMA CERTA DONZELAque deixara de O SER POR ARTES DO CRAQUE. Bira escondera-se e só agora aparecia em público, atendendo a apelos da torcida, por tratar-se de amistoso importantíssimo. Mas a POLÍCIA, que não tem bandeira, aproveitara a ocasião e, antes que o réu pirasse, dava-lhe voz de"esteje preso".

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8) A assistência, entretanto,que de nada sabia, cuidou que a prisão se prendia à queixa dos visitantes por causa do pontapé de há pouco. E vendo Bira ser arrastado campo a fora, irrompeu num sururu dos diabos, vaiando as visitas com buus e nomes feios; as quais visitas, que tomavam Coca-Cola encostadas à cerca, vendo-se atingidas não só pelos doestos como por pedaços de pau e tijolo, revidaram com as garrafas de refrigerante. O tempo fechou outra vez. Os polícias largaram o preso e se meteram no conflito. E quando os de fora começavam a apanhar feio, o motorista deles teve uma idéia: encostou o caminhão bem perto e tocou a buzina. A turma entendeu logo (ou quem sabe já era manobra habitual em "amistosos"?) e de umem um foram deslizando da briga e subindo para o carro. O que sei é que, quando os locais deram pela coisa, os inimigos já partiam numa nuvem de poeira, abandonando na pressa um dos seus paredros, malferido, com o sangue escorrendo do nariz e o belo terno roto.




9) Bira, igualmente, aproveitara a confusão para ir saindo de manso; agachado numa moita, lá em cima do morro, ficou a espiar o tintureiro chegar, encostar e, de um em um, recolher os remanescentes da refrega. E só saiu do esconderijo tarde fechada, quando no campo completamente deserto uma garça vinda do Jequiá sobrevoava o alagado, bicando restos das flores do buquê ofertado pelos visitantes.

[Ilha, 1954]


Obras de ficção revelam características de momento histórico, ou seja, o TEXTO É UMA FICÇÃO e as fotos são ilustrativas, não condizem com as imagens dos personagens acima narrados.
O texto foi extraído do livro "O Melhor da Crônica Brasileira 1", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 2000, pág. 56.

Raquel de Queiroz, autora do texto, nasceu em Fortaleza - CE, no dia 17 de novembro de 1910, filha de Daniel de Queiroz e de Clotilde Franklin de Queiroz, descendendo, pelo lado materno, da estirpe dos Alencar (sua bisavó materna — "dona Miliquinha" — era prima José de Alencar, autor de "O Guarani"), e, pelo lado paterno, dos Queiroz, família de raízes profundamente lançadas em Quixadá, onde residiam e seu pai era Juiz de Direito nessa época.



Rachel de Queiroz começou a escrever para jornais aos 19 anos e nunca mais parou, embora tenha considerado pequeno o número de livros que publicou.“Para mim, foram só cinco, (além de O Quinze, As Três Marias, Dôra, Doralina, O Galo de Ouro e Memorial de Maria Moura), pois os outros eram compilações de crônicas que fiz para a imprensa, sem muito prazer de escrever, mas porque precisava sustentar-me”, recordou a saudosa escrito cearence.

Recebeu, em 06-12-2000, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Em 2003, foi inaugurado em Quixadá (CE), o Centro Cultural Rachel de Queiroz.

Faleceu, dormindo em sua rede, no dia 04-11-2003, na cidade do Rio de Janeiro. Deixou, aguardando publicação, o livro "Visões: Maurício Albano e Rachel de Queiroz", uma fusão de imagens do Ceará fotografadas por Maurício com textos de Rachel de Queiroz.


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